Mara de Sousa Freitas
Mara de Sousa Freitas
— Avô, gosto tanto de estar, aqui, ao seu colo, e escutar histórias. — Disse a menina, com ar doce e tímido, a contemplar o horizonte, lá do alto da aldeia.
A acompanhar o olhar infinito da neta, o avô retorquiu:
— Que bom, minha senhora! É importante que conheças e não esqueças a(s) história(s).
— A história, a tua, a da nossa família, a da nossa terra e das nossas gentes, a da nossa Ilha… as histórias são como os espelhos. — Acrescentou ele.
A menina, surpreendida, exclamou:
— Espelhos, avô! Avô, não estou a perceber! O espelho serve para eu poder ver-me, por exemplo, quando quero ver se estou bem penteada. O que tem isto a ver com história(s)? Está
baralhado!
— Experimenta olhar o espelho e fica atenta. Diz-me o que consegues ver, procura ver o que estás a olhar. — insistiu o avô.
Perplexa e curiosa, a menina, rapidamente, abriu a sua bolsa, azul a tiracolo, e retirou o pequenino espelho cor-de-rosa. Sentada ao colo do avô, colocou o espelho diante de si e exclamou:
— Avô, vejo o meu rosto, os meus cabelos compridos, vejo-o, a si, que está atrás de mim, … não vejo, nem ouço mais nada. Continuo sem entender!
Com toda a serenidade que o caracterizava, o avô declarou:
— Minha senhora, o espelho refletirá, sempre, o que tu decidires e te dispuseres a ver e escutar: a beleza; o amor; o ódio; a verdade; a mentira; a compaixão; a indiferença; a justiça; a injustiça; o bem; o mal; os sonhos; os pesadelos; as lições; a ignorância; …
Tudo depende do teu olhar e do caminho que resolveres fazer. Se olhares o espelho como um reflexo fiel de ti, poderás (re)encontrar, eternamente, a tua história, a arte de ver a tua alma e escutar o teu coração. Nesse reflexo, vais poder, sempre, voltar a ti e aí encontrar a(s) história(s): as pessoas, os acontecimentos, as coisas — o bom e o menos bom, tudo — aquilo que eu pedi para recordares, sempre.
Cada um de nós está em cada outro e aceitar essa tua/ nossa vulnerabilidade é conhecer o valor da vida, o valor indestrutível de cada pessoa, de cada um de nós, e de todos. Independentemente das diferenças que nos possam separar, o que nos une será sempre uma razão maior.
A neta, que estivera completamente embrenhada nas palavras do seu ancestral, retorquiu:
— Ah! Avô, penso que agora já percebi! Então, o espelho é o guardião das nossas histórias; dos nossos segredos; aventuras; sonhos; conquistas; desilusões; lutas; tristezas; … ele é o guardião de tudo. Ele guarda cada bocadinho para devolver quando for necessário ou, quando, por exemplo, eu estiver a esquecer. Por isso é um espelho, ele permite “revelar”, “voltar para trás”, “dar a conhecer” e (re)descobrir-(nos). E eu que só via os meus cabelos. Estava mesmo cega! Desculpa, espelho!
— Obrigada, avô! Todos os dias, vou olhar o meu espelho para não esquecer de ver aquilo que é importante! — acrescentou a menina e ficaram ambos a olhar o horizonte, na linha das Ilhas Desertas.
Os tempos ora vividos impõem a imagem do espelho, de (re)descoberta, de voltar atrás e recordar a história, os acontecimentos, as implicações e consequências, os conhecimentos, aparentemente, rudimentares, mas, talvez, tão atuais na sua finalidade última. Noutros termos, não apenas nos meios — ainda que, por vezes, limitados na sua disponibilidade e acesso —, como também na finalidade última de cada ação, que vem (re)colocar o valor da vida, da solidariedade, da cooperação, da empatia, da compaixão e do amor, no lugar de onde nunca deveriam ter saído: no centro de todas as decisões, no centro de tudo aquilo que continuamos a fazer, quando ninguém nos está a observar, no centro das nossas inquietações e fundamento das nossas ações — o porquê daquilo que fazemos, e especialmente do como fazemos?
Os tempos de crise Global — como aliás qualquer crise — revelam o melhor e o pior de cada sociedade, de cada organização, de cada família, de cada pessoa. São momentos de verdadeiro desafio humano, especialmente no que diz respeito aos valores e princípios que devem nortear a estratégia de sobrevivência, a ação concertada que visa ser prudente e promover o melhor bem possível, ainda que possa incluir escolhas ditas «trágicas». Também por isso, a responsabilidade é uma das palavras de ordem, o princípio ético da responsabilidade, pelas gerações atuais e vindouras, sendo que esta resulta dos fundamentos das decisões e da adequada ponderação das suas consequências. Somos responsáveis pelo que fazemos e pelo que não fazemos.
Recordando a noção de moral e ética, sendo a primeira a determinação daquilo que é o «bem» e daquilo que é o «mal», e a segunda o permanente questionar do porquê de esse «mal» ser «mal» e de esse «bem» ser «bem», vale a pena olhar para trás com prudência e zelo, verificar os caminhos e as respetivas alternativas; compreender os resultados e o seu impacto; olhar os factos à luz da realidade atual; escutar com atenção as fontes de conhecimento, sobre os fundamentos e as consequências de cada curso de ação e depois, só depois, determinar uma estratégia, inequívoca, que se estrutura nos valores e princípios proclamados pela sociedade e no princípio da necessidade.
Sobre a importância da cooperação, da liderança, do trabalho em equipa e da forma como a sociedade se organiza, o «exemplo dos lobos», tornou-se viral, e procura apresentar como se organizam para travessias que representam risco. Ainda que esta descrição possa não estar totalmente validada, o que sabemos é que a hierarquia entre os lobos está bem delimitada, os seus membros cumprem as regras definidas, em prol do bem de todos. Esta estrutura procura promover a unidade e ordem, na alcateia, assim como, a redução dos conflitos ou comportamentos «desviantes» – que colocam todos em maior risco -, e promove, também, a adaptação e a sobrevivência, em circunstâncias adversativas. O seu uso pretende ser uma metáfora, e transcrevo:
«Os 3 primeiros lobos são os mais velhos ou os que estão doentes, marcam o ritmo do grupo. Seguem-se os cinco mais fortes que, em caso de ataque surpresa, os defenderão. No centro seguem os restantes membros da alcateia. No final do grupo seguem outros cinco mais fortes que vão proteger o grupo. Em último, sozinho, segue o lobo “alpha”, o líder. A alcateia segue ao ritmo dos anciões e ao comando do líder, que impõe o espírito de grupo, e não deixa ninguém para trás.»
O risco convoca a determinação de uma estratégia integrada — de mitigação dos riscos —, de maximização e justa distribuição dos benefícios, assim como, das medidas de proteção dos mais vulneráveis, sendo desejável que possa existir uma discriminação positiva, em favor destes últimos. A incerteza e insegurança da caminhada, tal como com a alcateia, prescreve a máxima cautela e proporcionalidade no uso dos meios e recursos, mas tal só é possível quando cada dado objetivo — história, factos, evidência — visam o respeito, escrupuloso, pelo princípio da necessidade e finalidade da ação última. Os resultados desejados são um fim em si e não um meio para atingir outro fim.
O momento é histórico e possibilita (re)descobrir a vulnerabilidade humana nesta condição de finitude, de fatalidade, de risco iminente e que iguala todas e todos, de todas as nações, naquelas que poderão ser as diferenças de natureza extrínseca. Todos estamos iguais nesta suscetibilidade de ser ferido de forma irreversível e, portanto, apenas o reconhecimento desta fragilidade, em todos e em cada um, se revela capaz de transformar a vulnerabilidade em capacidade para implementar e adotar medidas concertadas e protetoras, da nossa casa comum. Apenas quando protegemos cada um, e nestes especialmente aqueles que se encontram em maior risco e vulnerabilidade, somos capazes de amparar a nossa comunidade e cada um de nós. (Re)descobrimos, assim, a resposta ética à vulnerabilidade humana: a solicitude e o cuidado.
A vulnerabilidade humana deve ser o cerne do nosso comportamento ético e este deve ser uma expressão de atividade concreta na vida prática. A forma como agimos revela os valores e princípios nos quais inscrevemos a nossa história e é também instauradora de hábitos e costumes, de uma moral comum, que nos reconhece e narra. Os tempos de pandemia pela COVID-19 apelam ao princípio do respeito pela vulnerabilidade humana, à solidariedade, à solicitude, à confiança, à justiça, ao cuidado, e sublinham a importância da verdade e autenticidade nos processos de comunicação. «Tornar comum» parece ser essencial para todos poderem fazer escolhas livres e informadas — cada um e cada outro poder realizar o máximo de valores da sua vida —, e é sempre bom, em tempos de crise, trazer à memória as palavras de Amartya Sen, sobre a justiça, a esperança e a pobreza: “A pobreza não é apenas a falta de dinheiro; é não ter a capacidade para realizar todo o seu potencial, como ser humano”.
Os tempos de incerteza, insegurança e fragilidade – o marco histórico que vivemos -, solicita que cada um de nós possa (re)descobrir-se em cada outro, e que a vulnerabilidade humana seja reafirmada como princípio moral, descrito na Declaração de Barcelona (1998) «que obriga ao cuidado com os vulneráveis e, especificamente, não apenas à não-interferência na autonomia, dignidade ou integridade dos seres, mas também que eles recebam ajuda que lhes permita realizar o seu potencial[1]».
O espelho é rigoroso quer no presente, quer num futuro, muito próximo. O seu reflexo é/ será a imagem de como somos/ seremos capazes de reconhecer o valor de cada um em cada outro, o valor da vida.
[1] KEMP, P, RENDTORFF,J, – Basic principles in bioethics and biolaw: Autonomy, dignity, integrity, and vulnerability. 1998.