Filipe Gonçalves
Filipe Gonçalves
Hoje trago à memória a história de um homem que marcou a minha infância, princípio da adolescência. Falo do Castro Jorge. Ou melhor, do doutor António Vitorino Castro de Jorge.
Homem cuja actividade profissional não é indiferente à população do Estreito de Câmara de Lobos e algumas freguesias vizinhas. Posso garantir que quase toda a gente com quem falei tem uma história para partilhar sobre este homem.
Era conhecido como ‘o médico dos 300’. Sim, incrível! Cobrava 300 escudos (1 euro e meio) por uma consulta.
Diziam ser um médico milagroso que curava (quase) todas as doenças. Dores de dentes. Dores de cabeça. Febre. Gripes. Tudo.
E o modus operandi era o mesmo para todos os doentes. O paciente chegava ao pequeno consultório, sentava-se nuns bancos feitos em pedra e esperava que a porta castanha se abrisse para no interior o milagre acontecer.
Nunca me esquecerei (jamais esquecerei) o dia em que uma dor insuportável de dente quase me levava à loucura. A medo, e por saber que o dinheiro não abundava, lá expôs a aflição à minha mãe.
Conseguiu reunir 300 escudos (sabe lá Deus como o fez). Deu-me as indicações para chegar ao consultório. E lá fui eu. Nervoso para dar com o lugar e com o dente a latejar.
Sobre o lugar, não me podia enganar. As indicações foram certeiras; mais eficazes até que um GPS. Lembro-me de a minha mãe repetir: «Fica no Calvário, acima da venda do Hilário, numa rua inclinada, ao lado do sapateiro, mesmo por detrás da loja das tintas».
Memorizei todas as indicações – confesso que o teatro me ajudou a decorar. Ao chegar ao local, e do alto dos meus (talvez) 7 anos, perguntei a uma senhora que ali se encontrava.
Estava sentada na soleira da porta, de lenço florido a cobrir a cabeça, e as duas pontas davam um laço a tapar o pescoço. «É aqui que fica o consultório do senhor Castro Jorge», perguntei.
E assim foi. Esperei, esperei. Até chegar à minha vez.
No consultório do doutor, o atendimento era feito por ordem de chegada. Não havia marcações. Na altura também não tinha funcionária a receber os doentes. Apenas uma sala de espera tão fria quanto cinzenta.
Lembro-me de olhar à volta e à minha frente várias pessoas com o mesmo ar. O ar de acabadas. Tossiam, fungavam, cramavam. E eu apenas com uma insuportável dor de dente, e ansioso por conhecer o senhor doutor que me iria curar.
Devia ter passado apenas uma hora desde que cheguei e, de repente, mal a porta abre, os meus olhos de criança espevitada param no rosto de um homem. O tempo dava-lhe uns 70 e tal anos. Estava severamente marcado pelo tempo. Recordo-me.
Aquele rosto carregava uma série de rugas e escondia uma história que gostava de desvendar.
Mas o medo, confesso, o medo do homem com cara de mau fez com que a dor de dente por pouco desaparecera. Mas era apenas o meu psicológico a querer despachar o assunto o mais rápido possível.
Fui quase que obrigado a me sentar naquela espécie de chaise longue low-cost. Ainda me lembro da cor: preta. Em couro. E à minha volta uma série de instrumentos em metal, cada um parecia mais tenebroso que o outro. Transportavam-me para um qualquer filme de terror, daqueles da década de 90.
Nem tive tempo para dizer qual o dente que me magoava. Bastou apontar e zás. Tinha acabado de experimentar a dor de arrancar um dente a ‘ferro frio’. Mais tarde vim a saber que ‘ferro frio’ é o mesmo que dizer sem anestesia.
Não sei se o que mais me impressionou foram os utensílios tão antigos, se fora o consultório ou a figura daquele homem misterioso, que agora sei que nasceu um ano antes da Primeira Guerra Mundial.
Após a primeira ida ao consultório, nunca mais lá voltei.
À medida que o tempo ia passando aquele nome era presença constante nas conversas da freguesia. Nos domingos longos em casa da avó lá ia ouvindo, sem levantar suspeitas, pormenores sobre a vida do doutor Castro Jorge. Ora contadas pelas tias, ora pela mãe.
Sempre que alguém adoecia no Estreito o destino era um e só um: o consultório do Doutor Castro Jorge.
Passaram-se 30 e tal anos e ao longo destes anos consegui recolher pormenores da vida deste homem que me permitiram saber que o Castro Jorge não era apenas um ser misterioso a quem todos chamavam doutor.
Contaram-me que por cobrar 300 escudos era uma espécie de ameaça à concorrência. E uma vez, após regressar de consultas que ocasionalmente dava no Curral das Freiras, apercebeu-se na Estrada antiga da presença de uma senhora grávida e um rapaz. Precisavam de ajuda.
Parou o carro e tentou auxiliar o jovem casal. Mas quando se aproximou não eram bem duas pessoas a precisarem de ajuda. Era sim alguém que o terá ameaçado, com o intuito de impedir que continuasse com a concorrência desleal.
Nunca consegui confirmar a veracidade da história. O povo conta. Fica a dúvida ou a esperança de encontrar alguém que a possa esclarecer.
Foi-me dito também que o doutor Castro Jorge no pós 25 de Abril abraçou vários projectos políticos: foi inclusive candidato à Câmara de Câmara de Lobos, onde chegou a ser eleito vereador; também chegou a ser jornalista e por causa de um artigo que escreveu acabou por ser preso em Caxias.
O Doutor Castro Jorge reformou-se nos anos 80, mas mesmo assim, continuou na medicina privada, em clínica geral, até chegar aos 90 anos. Um ano mais tarde, em 2004, morreu.
Ficaram as memórias de um homem que me fez ter medo dos dentistas; que me ensinou a aplicar ao longo da vida o verdadeiro sentido da palavra ‘ferro frio’.
E ficam também outras tantas recordações de um homem que muito fez pelas populações do Estreito de Câmara de Lobos e arredores.