António João Gonçalves
António João Gonçalves
Era criança, e se calhar como eu muitos, por esta altura já contávamos os dias para chegar ao dia de Natal com uma meia dúzia de certezas:
Na minha casa, e não é que não houvesse noutros dias quando havia possibilidades financeiras para tal, não faltaria certamente o cacau, o queijo a manteiga e os bifes de cebolada (prato tradicional do dia de festa), um presente, muitas vezes um carro de folha ou então uma peça de roupa elementar e ainda amassaduras de bolos. O que mais me aborrecia e a outros como eu que tinham de palmilhar estradas e veredas para chegar à padaria que existia no Encontro em São Roque, era “acartar” com a referência dos mais velhos de que tínhamos de os levar com cuidado para não derramar a massa, os cestos de cana ou vimes cheios de formas com massa de bolo para a referida padaria, para serem cozidos. Tirando isto, o Natal passava também pela diferença das luzes que se ponham nos caminhos para o fim do ano, pela Missa do Galo, a tal que os pais diziam ser bonita pelos cânticos e que obrigatoriamente o “Glória a Deus nas Alturas” era cantado à meia-noite em ponto, e pelas missas do parto que eram mais para gente de “certa” idade, pois era preciso acordar muito cedo e frequentadas quase só por gente da freguesia.
Quem não ia à Missa do Galo fazia questão de ir a missa da manhã com a “vantagem” de no final ainda ouvir o grupo Recreio Musical União da Mocidade tocar no adro e poderem segui-los em romaria até à “Fonte do Preto” que ficava no Sítio do Calhau onde iam cumprir com uma tradição, o baptismo dos seus novos elementos. A caminho iam se juntando outros “romeiros”, tocavam e cantavam, comiam e bebiam. Outros havia, que nem missa nem Fonte do Preto eram o seu maior interesse. Esse, passava pela realização de um jogo de futebol entre solteiros e casados residentes da freguesia, muitas vezes “combinado” com mais de um mês de antecedência e que terminava sempre num convívio com uns copos de vinho, cerveja e sumos à mistura, umas sandes e uns petiscos para degustar. Mas tudo isto deu “meia volta”…
Já não se “acartam” mais massa de bolos para a padaria do Encontro que também já não existe. A melhoria económica e social do povo fez com que a qualidade de vida deste também melhorasse e trouxe a facilidade de terem acesso a queijo, bolos, manteiga e cacau sem ter de esperar pela Festa. O presente que ainda hoje chega pela magia do Pai Natal ou não para entrega nas primeiras horas do dia 25, não passa pelos carros de folha (já são raros) e não se fica tão só por um par de meias, umas cuecas e um pijama. Ainda bem! Mas como seria tão bom esta possibilidade ser de todos. Infelizmente ainda não o é. Na minha freguesia, a exemplo de outras tantas, ainda há quem necessite da ajuda de outros (pessoas e organismos) para que o seu Natal tenha uma “cor” diferente e se assemelhe ao da maioria. A celebração da Missa do Galo entretanto foi evoluindo e hoje, a igreja continua a encher-se mas mais para ver o Auto de Natal e a Romaria do fim da missa do que ter a preocupação de que o Glória se cante ao “cantar do galo”. As missas do parto, entretanto como em outras partes da ilha também se foram moldando aos tempos modernos. Não deixando nunca os seus cânticos tradicionais, estas actualmente são animadas quer pelo côro da paróquia, quer pelos escuteiros ou ainda por um ou outro grupo que se ofereça para fazê-lo também. Passaram como em toda a parte a contar com uma forte vertente profana, que por si já arrasta multidões ao convívio matinal e faz encher de gente nova e menos nova as igrejas. São Roque não é excepção. Cantorias, licores, cacau, sandes e outras iguarias da época não faltam, quer em bares das redondezas quer trazidos por particulares ou oferecidos por outras entidades, para serem degustados depois das referidas missas entre os participantes. A tradição de décadas do Recreio União da Mocidade deixou de se realizar, e se calhar por este abandono, até a Fonte do Preto desapareceu…
O futebol, esse continua a acontecer em cada manhã do dia 25, sempre com a finalidade de pôr solteiros e casados no campo frente a frente num tira teimas que se quer ano a ano fazer. No final do jogo, ganhe quem ganhar, prevalece o convívio, a partilha de comes e bebes. Uns ainda ganham as “trombas” dos familiares que desesperadamente aguardam os “seus jogadores” para o almoço de Natal e que teimam em deixar o convívio para irem para casa.
O importante é que com maior ou menor dificuldade, hoje na freguesia, ainda há instituições e pessoas que unem esforços e fazem com que os que menos podem e à medida do possível vivam também o Natal e a época continua a ser um pretexto para o convívio familiar.
Viva o Natal! Bom natal a todos!