Falemos das Marias, dos Josés, das Anas, dos Manueis e de todos aqueles que todos os dias se levantam, suspiram e enfrentam a vida.
Falemos dos sonhos, das mãos que um dia se juntaram tímidas e que anos mais tarde enrijeceram juntas no compromisso de uma vida partilhada. Do primeiro casamento na Igreja do Imaculado e das emoções contidas em soluços que não se veem nas fotografias a preto e branco de um álbum-memória que contém vida.
Falemos, pois, da esperança depositada na Santa assente na curva, que tudo vê e tudo julga.
Falemos do beijo roubado num beco que desaparece no infinito e da emoção da primeira casa. Da casa que se fez no cimo da escada da juventude e que agora no alto da escada da velhice é queda e vertigem para o medo. Das pernas que já não sobem nem descem e do coração que enfraquece até bater em surdina, enquanto os homens das promessas veladas prometem acessos que nunca chegam, reabilitações que nunca são feitas e sorriem com todos os dentes que têm e abraçam com braços-víbora que apertam e sufocam.
Falemos, sim, de Narciso e do espelho social que reflete uma realidade inventada. De sorrisos em esforço que iludem e escondem a vontade maior de um espelho do tamanho do ego inflamado de quem na ilusão se perde e tudo quer, menos falar das Marias, dos Josés, das Anas, dos Manueis e de todos aqueles que todos os dias se levantam, suspiram e enfrentam a vida.
Falemos das gentes que carregam às costas a sua história. Do primeiro filho, do primeiro neto, da morte anunciada e do silêncio. Os dias sucedem-se iguais, ciclicamente, e na curva onde a Santa tudo vê e tudo julga, estica-se a mão ao milagre do frango congelado e agradece-se por mais uma dádiva que enche a barriga até o próximo voto. Falemos do dia que sucede na míngua dos ossos que restaram e da espera que aumenta até que os homens dos sorrisos em esforço se entortem na sua verticalidade e façam chover novamente o milagre do frango congelado.
Falemos.
A Santa assente na curva tudo vê e tudo julga.