Sandra Araújo
Sandra Araújo
“Abril, águas mil”, mas também é o mês em que comemoramos a Revolução dos cravos, a Liberdade!
E que bem cheiram os cravos!
Naquele 25 de abril de 1974, Dona Celeste, que bem fez em fechar a sua florista e em distribuir as suas flores pelo povo…, às tantas pensava que iam acabar jogadas pelo chão… ou então… alguém as levaria para casa para alegrar uma jarra, já que era sábado! Mas não! Os seus cravos acabaram enfiados nas espingardas.
E ainda hoje, quando olhamos para um cravo, por mais simples que seja, olhamos para o passado e para uma Revolução que a todos mudou…
O engraçado é que muitos pensam que a revolução foi apenas um dia, preparada ao pormenor, é claro!… Mas que após o 25 de abril de 1974 tudo era um mar de rosas, ou de cravos, se assim quisermos entender.
Mas não!
As pessoas andaram com medo de represálias… perseguições…
No entanto havia os corajosos… os que continuavam a lutar, muitas vezes pela calada da noite… havia também os que exageravam nas suas lutas, aplicando julgamentos populares ou até mesmo explodindo bombas, como por exemplo: nos emissores do Monte, em carros ou até no avião da NORD – ATLAS, a qual não voltou a voar, e cuja fuselagem ainda hoje podemos ver em Água de Pena.
E claro que o Santo António da Serra não ficou aparte de toda esta situação.
Aliás, o Santo António da Serra foi declarado a 1ª Zona libertada da Madeira, e porquê?!
Escreveu Luís Calisto nas “Achas na Autonomia” a seguinte história:
“Uma bandeira da independência hasteada em zona central da freguesia, num pinheiro feito mastro, autentica o grito da libertação.”
“A bandeira do santo é objeto de cenas caricatas. As autoridades mandam soldados arriá-la num dia, mas na manhã seguinte já o azul-amarelo flutua ao vento. De uma vez, os independentistas destacam os eu especialista trepador de árvores. O moço sobe e desce a árvore cortando galhos e lambuzando o troco de massa com sustento. Depois, é a “malta da Flama” ficar à distância a gozar com os tropas que em vão tentam subir o pau ensebado, como nos jogos tradicionais. “ O chato é que ali há soldados madeirenses a passar pela humilhação”, admoesta-se um flamista.
A missão de arriar bandeira passa da tropa para os bombeiros. Que também não têm paciência para a rábula. E o pavilhão bicolor vai ficar no alto do pinheiro até morrer de velho.”
Poderia achar que era mais uma história, mas não! Aconteceu mesmo e, se não me falha a memória, o pinheiro ainda segue erguido (seco, mas erguido), naquele planalto que outrora foi Aldeia da Rainha e a 1ª Zona livre da Madeira!
Mas, e se tivesse que relatar o 25 de abril de 1974, como o faria?!
Decidi então contar uma pequena história, pela voz de um dos principais intervenientes, e seria assim…
Era um dia com pouco vento, mas mesmo assim a sementinha foi deslizando devagarinho por entre as ervas ressequidas de um inverno mal disposto e lá conseguiu encontrar um cantinho, resguardado por entre uma pedra meia saída do solo.
Adormeceu quase sem se dar conta…
Desde que saíra empurrada pelo vento para longe da sua mãe que não mais parara… eram os pássaros que a tentavam picar com os seus bicos aguçados e sedendos de comer alguma coisa… ou então, o senhor vento, que a empurrava para todo o lado, e ela sem saber, ia batendo nas folhas que ainda resistiam no chão ou então nos cascos rijos e já velhos dos pinheiros daquela mata bravia.
Adormeceu quase sem se dar conta…
No seu sonho, lembrou-se da cor vermelha viva de cada pétala da sua mãe. Ela fazia questão de esticar cada pétala para as aquecer com os raios de sol que iam rasgando por entre as nuvens… e o seu cheiro… ahhhhhhh, que saudades tinha do seu cheiro… um cheiro doce que chegava a todos os lados… parecia fantasia, quando todos paravam e fechavam os olhos, para que o seu cheiro perdurasse nas suas narinas… e foi assim que a pequena sementinha adormeceu quase sem se dar conta…
O chilrear dos pássaros acordou-a… não soube quanto tempo esteve a dormir mas sentia-se diferente… sentia-se em casa… abriu os olhitos devagarinho e ficou surpresa… já não era uma pequena semente que podia ser jogada pelo vento nem atacada por um bando faminto para a devorar… ganhara raízes e umas pequenas folhas já estavam desdobradas a apanhar o primeiro sol da manhã… era tão quentinho… era tão bom!
A sementinha tinha encontrado o seu lugar ao pé de uma pequena pedra gasta pelo passar dos tempos e agora sentia-se protegida pela sua amiga ali tão perto… ahhhhh, afinal era assim que se sentiam quando pertenciam a um lugar…era tão bom!
Curiosa como era, começou a olhar à sua volta… estava tudo diferente… parecia que um pintor decidira tirar um tempinho e começara a colorir aquela parte do campo. Estava tudo verdinho e por entre a relva que cobria todo o espaço que ela conseguia ver, havia algumas cores espalhadas… eram outras flores…. Ahhhh como se sentia feliz!
Os dias estavam a ficar mais quentes e ela sentia-se a crescer. As suas folhas esticavam-se todas quando sentiam os primeiros raios de sol e ficavam assim, tanto tempo, que ela perdia a conta dos minutos ou horas. Não queria se mexer só para saborear aquela sensação de calor que a aquecia desde o caule, chegando até às suas raízes, que agora eram mais fortes e bem fixas ao seu lugar. Ali era a sua nova casa!
Todos os dias crescia e notou algo que a fez relembrar a sua mãe… o seu cheiro era igual ao dela… era tão perfumada… ahhhh como lembrava-se daquele cheiro…
Mal a noite decidia chegar …fechava as pétalas uma a uma e pela primeira vez viu que eram vermelhas… tão vermelhas que brilhavam em conjunto com o pequeno orvalho que caia devagarinho… parecia magia.
Começou a ouvir um barulho metálico… olhou à sua volta e começou a ver as flores à sua volta a serem apanhadas… será que doía… ficou com medo… duas mãos tocaram no seu caule levemente… fechou os olhitos com muita força e ouviu o clic…. Mas não doeu… sentia-se a flutuar … juntaram-na a outras flores num belo cesto de vimes, e viu que todas tinham um sorriso maravilhoso… o cheiro era tão parecido ao seu… era a sua família. Sabia que parte dela ficava naquela terra e que voltaria a acordar… mas estava entusiasmada com aquela nova viagem.
Aconchegou-se às outras flores e foram todas embaladas dentro daquela cesta.
Estavam tão bonitas dentro daquela jarra… então porque ninguém as ia buscar? Viu fecharem as portas e ficou a pensar que no dia seguinte iam ser levadas para a casa de alguém… mas era tão cedo… porque iam embora? Era sábado e as senhoras ao sábado gostavam de ter as casas limpas e perfumadas, pelo menos era o que as ouvia a dizer desde que ali chegara… então porque estavam a fechar… queria perfumar uma casa e não ficar ali esquecida e murcha.
Será que ia acabar assim? Perdida numa jarra sem mostrar a sua cor vermelha e o seu perfume cativante?
Celeste, a senhora da loja, voltou atrás e pegou nas flores que estavam dentro da jarra… uma a uma, ficaram contentes por sentirem aquelas mãos a lhes tocar. Iam perfumar e alegrar uma sala, um quarto, um lugar qualquer… ficaram todas despertas e desataram a esticar as suas pétalas para demonstrarem a sua verdadeira beleza.
Saíram da loja e os raios de sol lhes deu os bons dias… iam todas tão bonitas… e aquele passeio não só as alegrava, como alegrava quem as via passar.
Então porque paravam?
Por entre as outras flores sentia-se a ser puxada e separada. Para onde iria? Será que já não a queriam?
Foi então que olhou à sua volta e viu… eram homens fardados e todos tinham uma espingarda na mão… sentiu que Celeste a entregava a um desses Homens. Ele agarrou no seu pequeno caule, olhou demoradamente para as suas pétalas… deixou que o seu cheiro entrasse nas suas narinas e então decidiu … meteu o seu caule pelo cano da espingarda, deixando apenas a flor e umas pequenas folhas de fora.
Sentiu-se bem… melhor que na jarra da loja… melhor que no campo verdejante… Aquela flor sentiu que era ali afinal que pertencia…
À sua volta viu que todos tinham ficado com uma das flores da Celeste e faziam igual… enfiavam nas suas espingardas…
As flores, afinal não iam alegrar uma sala, um quarto um espaço… elas foram alegrar uma multidão que estava na rua.
– Oh mãe, que lindo cravo vermelho aquele!
Afinal não era uma flor qualquer… era um cravo vermelho!