Filipe Gonçalves
Filipe Gonçalves
Nunca gostei das férias escolares. Ficar em casa, três meses, sem fazer nada deixava-me aborrecido.
Mas aos 10 anos, talvez onze, a necessidade obrigou-me a ganhar uns trocos. E nada me deixava mais feliz quando o calendário anunciava Setembro.
Não porque faço anos neste mês, mas porque dávamos as boas-vindas às vindimas.
Na freguesia do Estreito de Câmara de Lobos, ainda bem cedo, homens e mulheres aguardavam na berma da estrada a chegada da boleia.
Iam ganhar o dia nas vindimas.
Não consigo precisar quanto ganhavam, mas sei que o pouco que recebiam não fazia jus à agressiva tarefa de vindimar.
A curvatura dos corpos estava alinhada com as latadas que se precipitavam pelas encostas da tão linda freguesia do Estreito.
O som do corte da uva com o podão quase parecia ser a banda sonora perfeita daqueles longos dias de setembro.
Subir curvado com um cesto de uvas às costas era tão desafiante quanto escalar uma montanha.
E tem mais!
O que ganhavam por diária era o que diziam ser o preço justo. Duvido!
Diziam também ser proporcional à idade. Talvez!
Eu era muito novo e também cheguei a ser chamado para ajudar. Não me lembro de quanto mas penso que cheguei a ganhar mil e 500 escudos por acartar baldes de uvas desde o final do poio até à estrada. “Guarda [o dinheiro]! Sempre é uma ajuda para comprares umas sapatilhas para Educação Física”, foi-me dito pelo senhor que fazia as contratações.
Queria saber, mas não me lembro do nome. Recordo-me de usar chapéu, de ser alto, tão alto como os espaldares. Ah, tinha também a cara marcada pela idade e pelas agruras dos tempos. Dizia-me: “Corta-se as uvas com cuidado”.
Aliás, tudo era feito com cuidado. Desde a perícia no corte até colocar o cacho no cesto para não “pisar” a uva.
Quando a fome apertava, sabíamos que era hora do almoço quando se ouvia uma salva de foguetes a estoirar a freguesia. “Já é meio-dia”, pareciam anunciar.
As dores que sentia nas costas desapareciam. Não fazia trabalhos forçados! Mas para os meus (talvez) 11 anos, era muita dor para uma criança só!
Depois do almoço, para aliviar o cansaço alguém oferecia um “copinho de vinho”. Os mais novos bebiam sumo. Mas os meus olhos de criança curiosa concentravam-se naquele vermelho – cor sangue.
Confesso que cheguei a beber às escondidas! Quem nunca! Depois, era a Festa das Vindimas. Um grande arraial. Mesmo! O Estreito de Câmara de Lobos unia-se. Diria mesmo que era uma forma de homenagear estes homens e mulheres que tinham na agricultura a única e fonte principal de rendimento!
As bandeiras a ornamentar a principal rua. As barracas. E o cheiro a vinho! Tão doce, tão vermelho. Que memória!
Tudo era feito com simplicidade mas com muita paixão.
Homens e mulheres de copo de vidro na mão provavam o vinho. “Este cá é meu. Daqui do Estreito” dizia o ‘vendeiro’ com orgulho.
Os tempos foram passando! Os mais velhos morrerem, os mais novos tornaram-se adultos. E o verde que pintava e cobria parte da freguesia do Estreito transformou-se em progresso.
Agora quando volto ao Estreito (em folga ou a trabalho) a minha memória foge para o antigamente. Não é tristeza. São saudades. Olho em silêncio e vejo que as vias rápidas rasgaram a paisagem; e das bonitas e frondosas latadas já só restam as tais memórias. Tão doces de recordar e servem apenas para não me esquecer de quão árduo e ingrato é o trabalho destes bravos homens que fazem de tudo para garantir sustento através do vinho. Tão pouco reconhecimento!
No final, só posso prestar a minha singela homenagem. Aos agricultores. Às vindimas. Saúde!.